terça-feira, 23 de agosto de 2011

Shivaísmo da Caxemira 2

Shivaísmo da Caxemira: a Escola das Tríades


Texto de João Gonçalves 
em O Som e a Escritura


Quando pensamos sobre os mistérios da existência do ser humano (e do universo) a partir dos ensinamentos do Shivaísmo, o conceito mais importante que vem à tona é o da tríade shiva(Consciência divina)-shakti(Manifestação)-nara(Indivíduo). Em segundo lugar, a tríade icchā(Desejo)-jñāna(Conhecimento)-kriyā(Ação).
A palavra sânscrita “trika” quer dizer tríade. É essa uma das formas de referir à tradição shivaíta caxemire, que, em verdade, não consiste de uma única doutrina, mas é um grupo de doutrinas interdependentes. De certa forma, Trika pode ser considerada como uma nomeação que provém do interior da tradição, enquanto que “Shivaísmo da Caxemira” nomeia a tradição a partir e em função do olhar externo. Traduzindo, essa escola iniciática chama-se Escola das Tríades. Belíssimo!
O ponto chave da tradição é compreender que, em essência, consciência divina (Shiva), manifestação (Shakti) e indivíduo (Nara) são idênticos. Trata-se então de um monismo (mono = um) pleno. Dá-se o nome de monistas às tradições espirituais que afirmam que a multiplicidade que presenciamos no mundo existe apenas superficialmente e, conforme, aprofundamos nossa percepção, o que é múltiplo demonstra-se como unitário. Uma palavra sânscrita que é usualmente empregada com essa intenção é “abheda” – literalmente: “não multiplicidade”.
Encaramos as diferenças pessoais como fatores determinantes para construir nossa própria imagem. Isto é, nossa auto-imagem tem origem na representação que fazemos do outro. Com isso, para a experiência no mundo ser positiva, é necessário que o indivíduo diferencie bem aquilo que ele é daquilo que ele não é. Essa visão não está equivocada, porém, gera um condicionamento que impede (e, no melhor dos casos, dificulta) a vivência de estados mais elevados de consciência. É bem vindo e necessário que saibamos diferenciar os vários níveis de existência: no nível denso, somos múltiplos, mas, no nível sutil, somos uma unidade.
Dado que a tríade afirma que consciência divina, manifestação e indivíduo são, em essência, idênticos, a crença profunda nas diferenças faz com que as tentativas de saltos da consciência do aspirante sejam reduzidas ao nível da experiência pessoal apenas. Como isso se modifica?
A explicação é longa. De acordo com a tradição, a criação do mundo não antecede a criação da consciência, como na visão dos evolucionistas. Também não há um criador que produz um mundo como um objeto externo a si mesmo, como na visão dos criacionistas. O mundo é emanação da consciência divina. Pensa-se no fogo e na combustão, inseparáveis, indistinguíveis. Eis aí a identidade entre dois elementos da tríade: divino (consciência) e mundano (manifestação) são idênticos. Um calor intenso, excessivamente intenso, é gerado no seio da luz da consciência divina e esta se transforma, num desdobramento expansivo descomunal, e torna-se então o mundo. Nesse ato de expansão, há também o ato de multiplicação: a consciência una manifesta-se sob múltiplas formas, expressando-se assim sob as consciências individuais.
E, então, estamos todos aqui, múltiplos, indivíduos que manifestam a consciência divina sob forma individual, em um incessante experimentar de tudo o que é sensorial. E isto não é um problema, nem uma queda, nem um efeito colateral da criação. É o que é. Somos o que somos. Se existe satisfação com essa condição, não há nenhum julgamento moral com relação a ela. Há, entretanto, os indivíduos que anseiam por uma superação de sua atual condição. Os indivíduos que não se satisfazem com o incessável buscar pelas relações e objetos exteriores.  E, para eles, a tradição iniciática propõe um descondicionamento de sua maneira de verem a si mesmos. Ao assumir que existe um vazio inerente às experiências comuns, procura-se preencher esse vazio com outras formas de vivência que resultam numa outra maneira de perceber-se e portar-se diante do mundo.
Trata-se então de um auto-reconhecimento (pratyabhijñā). Ver-se a si mesmo e redescobrir que a própria consciência é luz. Uma luz que está limitada. Nosso ser é uma expressão contraída do ser divino.
Uma prática contemplativa sugerida é esta:
Sentar-se em postura de meditação, de olhos fechados ou abertos. Dispor-se interiormente ao estado de presença. Evite lutar contra as distrações, elas simplesmente existem. Retorne o foco sobre si mesmo(a) sempre que preceber que a mente flutua. Observe sua consciência como luz. Procure sentir que essa luz está acesa. Lembre-se do fato de que você não sabe quem a acendeu, que não foi você quem a acendeu e que ela brilha desde sempre. Manter-se por alguns minutos nessa sensação. A seguir, associe a tríade à respiração da seguinte forma: (1) na inspiração, sinta seu próprio ser, como consciência indivídual; (2) retenha suavemente o ar e sinta a presença mais ampla e sutil do seu ser, buscando a consciência universal; e (3) na expiração, sinta a presença do mundo, a materialidade e a multiplicidade. Em síntese: o ar vem para dentro e sentimos o individual; a respiração é suspensa e sentimos o universal; o ar sai e sentimos o mundo material. Permaneça nesse ciclo de 5 a 10 minutos e depois suspenda, mantendo-se ainda em estado de interiorização, permitindo-se estar apenas presente. Finalize quando sentir que é o momento.
Sobre tríade desejo-conhecimento-ação, falarei no próximo post. É essa tríade que explica o estado de contração da consciência divina, manifesto em nós, indivíduos.
dica: veja o post A meditação natural e ininterrupta para conhecer dicas gerais sobre o preparo para a prática de meditação.

* a foto (tirada por mim) mostra um Yoni-liṅga (símbolo da conjunção essencial entre consciência e matéria) de um templo shivaíta em Khajuraho.



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